sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Só eu


De repente sou só eu. Só eu naquela noite fria em que amar doeu pela primeira vez. Só eu naquela luta com meu corpo, naquela briga que parecia não ter fim. Só eu rezando a um deus que não sei se acredito, voltando no tempo e vendo que não sobrou ninguém. Só eu deitada no chão do meu quarto ignorando os gritos que vinham lá de fora, me fingindo de cega, fugindo dos problemas. Só eu fingindo estar bem, me fazendo de forte. Só eu desligando o telefone para deixar uma discussão pela metade, me matando pouco a pouco.
Só eu me confessando meus mais terríveis segredos, sentindo medo do futuro, abafando meu choro no travesseiro para não acordar ninguém.  Só eu correndo naquela chuva, ou sentada na esquina esperando o tempo passar. Só eu naquela tarde no parque.  Só eu dormindo na minha cama. Só eu me escondendo dos meus fantasmas debaixo das cobertas. Só eu vendo o pôr do sol na esperança do próximo dia ser melhor, fazendo pedidos a estrelas e bebendo aquela bebida amarga.
Só eu tentando ser boa o suficiente, encarando o teto em todas as minhas noites de insônia, construindo meus castelos de areia. Só eu lutando para sobreviver. Só eu nos meus sonhos futuros. Só eu no meu passado. Só eu e meus vazios e confusões. Só eu naquele beijo,naquele abraço e naquela despedida que não existiu.  Só eu. Só. Sozinha, como sempre foi e sempre vai ser.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

A menina do andar de cima


- Isabela,come esse brócolis.
- Não quero.
- Para de gracinha e come logo.
- Não quero e não vou.
- Tá querendo ficar de castigo menina?
- Se eu ficar de castigo deixo de ir pra escola?
- Não.
- Então não quero.
- Vai comer agora ou vou aí te bater.
- Não. E se me bater, vou chorar bem alto. Até o prédio todo ouvir e chamar a polícia.
- Ta se achando muito espertinha, hein menina? Olha que sem o brócolis não tem sobremesa.
- Não queria mesmo.
- Come logo filhinha, você vai atrasar.
- É ruim, mamãe!
- Se fosse ruim mamãe não comia.
- Mas você nunca come.
- Nunca?
- É, nunca vi no seu prato.
- Er.. Mas a mamãe já ta grande.. quando pequena comi muito pra ficar assim.
- Se eu comer fico igual a senhora?
- Claro!
- Então não quero..

Disse isso e saiu da mesa. Vitória da Isabela.


quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

O hippie e a âncora

- Moço, quanto custa esse colar?
- Hum, a âncora, meu preferido. Tens bom gosto. É muito pé no chão, menina?
-Muito pelo contrário. Asas demais e pés de menos
- Então achou exatamente aquilo que precisava.
-Âncoras que me prendam ao chão?
- Não, âncoras que não te deixem esquecer suas raízes. Você tem uma carinha de confusão. Parece meio perdida aí dentro. E é exatamente nessas horas que você tem que voltar-se para si, por mais que isso seja um tombo para quem esteja nas alturas.
-Sim.. Confusão talvez seja a palavra certa.
- Você me parece daquelas que tentam entender demais o mundo quando nem ao menos se entende, estou certo?
-É, talvez seja isso.
-Pois bem. Quer um conselho?  Você em primeiro, sempre. Pense primeiro em si. Você precisa se entender e estar bem consigo para só então entender o mundo.
-E você entende o mundo?
-Faço meu possível. Tento ir vivendo um dia de cada vez e limpando sempre essa casa que é minha alma para não deixar acumular bagunça. Mas sempre acaba aparecendo uma poeirinha aqui e outra ali, né? Disso não dá pra fugir.
-Minha casa anda tão bagunçada que acho que nem tem espaço para mim lá dentro.
-Ah, tem sim. Sempre tem. Se não conseguir entrar pela porta, pule a janela.
-Difícil moço, difícil..
-Acredita em Deus, menina?
- Olha... É complicado. Não sei bem. Acredito em algo, disso tenho certeza. E é para esse algo que agradeço todos os dias ou que peço ajuda quando tudo parece pesado demais para meus ombros. Mas não acredito nesse Deus de todo mundo, cheio de tantas regras, dogmas, pecados. Nem mesmo acredito em céu ou inferno.
- Quer ouvir um segredo? Deus é individual. Sim, cada um tem o seu. Há até aqueles que não acreditam, e se é assim que pensam, no fundo a inexistência de um Deus torna-se o Deus deles. O importante é acreditar em algo, mesmo que acreditar seja justamente o não acreditar. Me entende? Algo para sentir lá no fundo e prender-se quando nada parecer fazer sentido.
-Sim entendo, acho que você é um dos primeiros que não me julgam pelo meu Deus.
-Ninguém está aqui para julgar ninguém.
-Verdade.. Seria bom se todos pensassem assim. Olha moço, por mim ficaria aqui por horas, mas infelizmente estou atrasada. Quanto é mesmo?
-Todos estão. Olha, vamos fazer assim, fica sendo um presente. Quando sua confusão parecer maior que tudo, feche os olhos, respire fundo e segure bem forte essa âncora por entre os dedos. Pense em si, garota. Você me parece uma pessoa incrível, vê se não se perde por aí.
-Nossa, nem sei como agradecer...
-Já agradeceu com esse lindo sorriso no rosto. Vale mais que qualquer dinheiro.
-Muito obrigada moço, de verdade! Até mais.
-Até, menina. Ah, e só não deixe a âncora te prender também. Siga em frente mas com certo cuidado. A palavra certa talvez seja equilíbrio. Um pé aí dentro e outro pé no mundo.
-Pode deixar!
-Foi um prazer te conhecer!
-O prazer foi todo meu.

E foi assim que conheci Ângelo, o hippie vendedor de colares da esquina do metrô. Um anjo sem asas que trouxe a minha vida um pouquinho da leveza que tanto estava precisando. Já voltei a aquela esquina para vê-lo alguns dias depois, mas nunca mais o encontrei. Deve ter ido para outra rua, entrar por acaso na vida de alguém e ajudá-lo com calma a desembaraçar todos os seus nós internos.
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